Terra fresca da sua tumba (Portuguese Edition)

O simples fato de que a embarcação não tivesse sucumbido no ventre infinito do oceano, tendo fissuras ao longo dos seus sete metros de plataforma, já era uma prova desse milagre amoroso, desse milagre que acontecia em pequenas permanências: um dia depois do outro depois do outro.

Quando falava, antes do naufrágio, Coronado contava lendas japonesas de garotas fantasmas, de príncipes marciais de outros séculos que recitavam poesia enquanto decapitavam o inimigo; aquele garoto era uma caixinha de surpresas, um maricas dos mais entendidos.

O branco do olho tingido pelo veneno que, sem saber, havia ingerido das vísceras da gaivota, confirmava sua vocação de morto.

Amador levantou a camiseta do garoto, a mesma de que havia tirado sarro quando subiram na embarcação, porque deixava evidente a juventude de Coronado, sua ingenuidade comovente de principiante, declarando ao mundo com orgulho que pertencia aos “tiburoneros”.1 A cooperativa vendia essas camisetas aos turistas, mas eram poucos os pescadores que a usa

aguardava como uma promessa fiel depois de Elías? O que ele ia fazer?

O bom de estar ali, deitado com um morto, é que não se sentia tímido. Podia olhar para ele sem interrupções, como se penetrasse seus miolos quietos, já livres de tanto tormento.

Era lido, o Coronado, sempre tinha algo de curioso para contar. Sobre o Estado Islâmico, sobre lendas japonesas de outros séculos, sobre a bactéria comedora de carne, sobre a migração dos pássaros. Pena que ele não tivesse se informado sobre formas de sobrevivência em um naufrágio. Foi aí que ele se deu mal.

Naquela época ele não tinha como saber que o pânico se apresenta, assim como o Diabo, de diversas formas. Agora mesmo, por exemplo, essa mulher pergunta se ele teve piedade de Coronado e o obriga a cavar lembranças mais precisas daqueles momentos em que o mar, sua imensidão plúmbea, levava o barco de lá para cá, pondo e tirando água da boca aberta

Giovanna Rivero nasceu na Bolívia, recebeu prêmios e é uma das principais vozes desse país. Em 2011, a Feira Internacional do Livro de Guadalajara a incluiu na lista dos “25 Segredos Literários Melhor Guardados da América Latina”. E apesar de já não ser mais um segredo em grande parte do continente, talvez ainda o seja no Brasil.