O branco do olho tingido pelo veneno que, sem saber, havia ingerido das vísceras da gaivota, confirmava sua vocação de morto.

Prefere ficar quieto. É um direito, a moça da terapia disse, é um direito ruminar as lembranças como se fossem pasto. Então ele se serve de um pouco mais de linhaça, bebe com mais paciência. Pelo vapor do prato, calcula que as tortillas ainda estão fervendo.

aguardava como uma promessa fiel depois de Elías? O que ele ia fazer?

Era lido, o Coronado, sempre tinha algo de curioso para contar. Sobre o Estado Islâmico, sobre lendas japonesas de outros séculos, sobre a bactéria comedora de carne, sobre a migração dos pássaros. Pena que ele não tivesse se informado sobre formas de sobrevivência em um naufrágio. Foi aí que ele se deu mal.

A morte? Sim, com certeza, a morte, nossa principal anfitriã. Mas não só ela, nesse mesmo lugar de onde nos espreita a morte, habitam também outras possibilidades: a loucura, o ódio, a vingança, o medo. E também – por que não? – a possibilidade mais profunda de amor.

Quando falava, antes do naufrágio, Coronado contava lendas japonesas de garotas fantasmas, de príncipes marciais de outros séculos que recitavam poesia enquanto decapitavam o inimigo; aquele garoto era uma caixinha de surpresas, um maricas dos mais entendidos.

O bom de estar ali, deitado com um morto, é que não se sentia tímido. Podia olhar para ele sem interrupções, como se penetrasse seus miolos quietos, já livres de tanto tormento.

Giovanna Rivero nasceu na Bolívia, recebeu prêmios e é uma das principais vozes desse país. Em 2011, a Feira Internacional do Livro de Guadalajara a incluiu na lista dos “25 Segredos Literários Melhor Guardados da América Latina”. E apesar de já não ser mais um segredo em grande parte do continente, talvez ainda o seja no Brasil.

Naquela época ele não tinha como saber que o pânico se apresenta, assim como o Diabo, de diversas formas. Agora mesmo, por exemplo, essa mulher pergunta se ele teve piedade de Coronado e o obriga a cavar lembranças mais precisas daqueles momentos em que o mar, sua imensidão plúmbea, levava o barco de lá para cá, pondo e tirando água da boca aberta